Medalhões


Vocês já leram o conto A Teoria do Medalhão de Machado de Assis?

De forma resumida, é um diálogo no qual um pai dá conselhos ao filho para que este possa se tornar o que chama de medalhão. Para atingir esse objetivo, ele deve se abster de refletir e ter ideias próprias. Deve também apenas repetir fórmulas prontas e discorrer sobre teses metafísicas que não ultrapassem os limites da vulgaridade. A ironia de Machado é tanta que o pai recomenda ao filho que vá a livrarias somente para socializar e que não faça caminhadas sozinho porque isso poderia levá-lo a ter ideias.

A primeira vez em que o li, na época da Faculdade de Letras, fiquei chocada com a semelhança entre os conselhos dados pelo pai para o filho obter o respeito da sociedade e o que observava na rotina do Tribunal – e isso tem tudo a ver com o asco que desenvolvi pelo Direito.

Não cheguei a contar nos textos anteriores, mas trabalhei no Tribunal de Justiça do meu estado como assessora de desembargador por mais de quinze anos. Durante esse período, analisei alguns milhares de processos e nunca parei de me surpreender com a péssima qualidade do que precisava ler, com o agravante de que com o passar do tempo o número de processos foi aumentando e a qualidade foi decaindo.

Era interessante observar como muitos advogados – e depois também os magistrados, nas decisões – utilizavam expressões prontas porque pareciam bonitas, apesar de não terem relação alguma com o que pretendiam dizer. Elas impressionam quem não compreende aquela linguagem rebuscada, mas o exame frio do que estava escrito levava à conclusão de que ninguém sabia do que estava falando. Apenas se repetia, repetia, repetia. Era tudo uma grande colagem mal feita de parágrafos desconexos em pilhas intermináveis de processos.

Um exemplo disso eram os processos de banco com que eu tinha que lidar quase diariamente. No meio de palavras pomposas, havia menção a contratos diferentes dos que estavam sendo analisados, eram citadas cláusulas (com direito a número e páginas muitas vezes) que não existiam, referidos fatos que nunca aconteceram no caso. Essa era uma parte do problema.

A  outra parte era o uso totalmente inadequado da linguagem. Pontuação? Coerência? Coesão? Nada. Nem a ortografia, que poderia ser conferida no próprio editor de textos, era respeitada. Um pesadelo. 

Já a pose, esta estava sempre lá. Verdadeiros medalhões. Como se o terno, a gravata e a prolixidade fossem capazes de suprir a falta de capacidade intelectual (ou a inópia mental, para usar as palavras de Machado), o despreparo, o descaso ou a preguiça. Talvez uma parte do problema fosse o grande volume de trabalho e a falta de tempo, mas isso não justifica a redação de textos que muitas vezes não podiam ser examinados por serem incompreensíveis, o que só servia para prejudicar as pessoas envolvidas nos processos.

É claro que havia também bons advogados e trabalhos muito bem feitos, mas eram tão raros no meio daquele mar de horrores que acontecia de pararmos para elogiar – admirados – quando apareciam.

Tudo isso é uma pena, porque o Direito é imprescindível para regular a sociedade e resolver conflitos, mas se perde tempo, trabalho e recursos com processos inadequados, o que faz com que as demandas que mereceriam atenção tenham que competir com eles, em clara desvantagem. 

Não sei o que vai acontecer no futuro, mas adoraria não precisar retornar àquele mundo. Não sinto a menor saudade.



Sobre a foto: sim, eu sei que hoje os processos novos são eletrônicos e que os antigos estão sendo digitalizados, mas os processos de papel foram a minha realidade até julho de 2019.


Quem tiver interesse pode conferir A Teoria do Medalhão nesse link (domínio público).

Comments

  1. Oi Renata, não sabia que a qualidade dos processos é tão ruim, difícil aguentar mesmo. Sucesso aí. bjs

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  2. Assino embaixo. O mais triste é ver como esse tipo de linguagem influencia a escrita nesse país. Maldito Rui Barbosa, que fez dessa linguagem o padrão da pseudointelectualidade brasileira.

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    1. Sim, influencia. E acabamos com um monte de gente falando coisas sem sentido (ou sem mensagem alguma) só porque no conjunto parecem bonitas. A mesma coisa nos discursos...

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